quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Psicologia do Arquétipo da Criança

Marcos Spagnuolo Souza
A organização da psique humana possui a seguinte estrutura: persona, inconsciente e si-mesmo.
A persona situa-se no nível consciente e representa todos os ensinamentos que recebemos a partir do momento em que ocorre o nascimento.
No inconsciente existe duas categorias: 1)Inconsciente pessoal que indubitavelmente possui sua origem nas vivências pessoais reprimidas que são esquecidas, podendo ser inteiramente explicadas pela anamnese individual. 2) Inconsciente Coletivo (alma instintiva) de caráter impessoal que não pode ser atribuída a vivência do passado individual e conseqüentemente não pode ser explicada a partir de aquisições individuais. Inconsciente Coletivo corresponde a certos elementos estruturais coletivos (e não pessoais) que são herdadas tais como os elementos morfológicos do corpo humano.
Os produtos do inconsciente pessoal e coletivo surgem em um estado de intensidade reduzida da consciência (em sonhos, sonhos acordados, delírios, visões, etc). Nesses estados cessa a inibição provocada pela consciência sobre os conteúdos inconscientes, e assim jorra, como que saindo de portas laterais abertas, o material até então inconsciente, para o campo da consciência.
Na realidade nunca nos libertaremos legitimamente inconsciente pessoal e coletivo (alma instintiva), da mesma forma que não nos livraremos de nosso corpo e de seus órgãos sem cometer suicídio.
O ser humano primitivo não pensava, mas sim que "algo pensava dentro dele". Sua consciência era invadida pelo poderosíssimo inconsciente coletivo, daí o temor de influências mágicas que a qualquer momento podiam atravessar a sua intenção e por esse motivo ele estava cercado de poderes desconhecidos aos quais devia ajustar-se de algum modo. Devido ao crônico estado crepuscular de sua consciência, muitas vezes era quase impossível descobrir se ele apenas tinha sonhado alguma coisa ou se a viveu na realidade. O mundo mítico dos antepassados, por exemplo, o atacava constantemente.
A consciência do homem civilizado possui um instrumento eficaz para a realização de seus conteúdos através da dinâmica da razão, com o crescente fortalecimento desta última podendo perder-se na unilateralidade desviando-se do inconsciente pessoal, do inconsciente coletivo e do si-mesmo. Isso representa a possibilidade da liberdade humana, mas, por outro, é a fonte de infindáveis transgressões que o pode levar a loucura e a perda da alma (si-mesmo). O homem primitivo se caracteriza pelo fato de estar mais próximo do instinto, como o animal, pela neofobia (terror do que é novo) e pelo tradicionalismo. O ser humano é lamentavelmente atrasado enquanto nós exaltamos o progresso. Nossa valorização do progresso possibilita, por um lado, uma quantidade das mais agradáveis realizações do desejo, no entanto, por outro, acumula uma culpa prometèica, igualmente gigantesca, que exige de tempos em tempos uma expiação sob a forma de catástrofes fatais. Há muito a humanidade sonhava com o vôo e agora já chegamos aos bombardeios aéreos! Sorrimos hoje da esperança cristã no além e nós mesmos acabamos caindo em situações piores que a idéia de uma além-morte prazerosa.
O ideal retrógrado é sempre mais primitivo "mais moral", posto que se atem fielmente a leis tradicionais. O ideal progressista é sempre mais abstrato, não- natural e mais "amoral", na medida em que exige infidelidade à tradição. A característica retrógrada é mais próxima da naturalidade, sempre ameaçada, porém, de um despertar doloroso. Quanto mais a consciência se diferencia, tanto maior o perigo da sua separação da raiz. Quando mais o inconsciente coletivo é reprimido pela consciência, mais ele se apodera da consciência, chegando a destruí-la. Um progresso viável só pode ocorrer através da cooperação entre persona, inconsciente pessoal e coltivo.
A criança (si-mesmo) é o “símbolo” da salvação. Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros.  A vida é um fluxo, um fluir para o futuro e não um dique que estanca e faz refluir. Não admira que tantas vezes que os salvadores míticos são crianças divinas. A criança pode ser expressa, por exemplo, pelo redondo, pelo círculo ou pela esfera, ou então pela quaternidade como outra forma de inteireza. A inteireza que transcende a consciência é o si-mesmo.
O si-mesmo, representado pela criança é "menor do que o pequeno e, no entanto, maior do que o grande" complementa a impotência da "criança" com os seus feitos igualmente maravilhosos.
O inconsciente pode nulificar a criança (si-mesmo). O perigo ou ameaças a criança é representado por dragões, cobras e vertebrados inferiores que são símbolos do substrato psíquico coletivo, cuja localização anatômica coincide com o cerebelo e a medula espinal. Estes órgãos constituem a serpente.
A criança, o si-mesmo é o herói que deve vencer o monstro da escuridão: a vitória esperada do si-mesmo sobre o inconsciente. Dia e luz são sinônimos do si-mesmo, noite e escuridão, do inconsciente. O nascimento da criança é provavelmente a experiência mais forte da existência humana. "E Deus disse: Faça-se a luz.!" A luz foi feita e a escuridão desapareceu.
A criança enjeitada, abandonada, o risco que está sujeita, e o nascimento misterioso descreve certa vivência psíquica de natureza criativa, cujo objetivo é a emergência de um conteúdo novo, ainda desconhecido. A nova configuração, a criança é a transcendência dos opostos.
Nada no mundo dá as boas-vindas a este novo nascimento, mas apesar disso ele é o fruto mais precioso e prenhe de futuro da própria natureza originária; significa em última análise um estágio mais avançado da auto-realização. "Criança" significa algo que se desenvolve rumo à autonomia. Ela não pode tornar-se sem desligar-se da origem: o abandono é uma condição necessária, não apenas um fenômeno secundário. O Menino Jesus, por exemplo, permanece uma necessidade cultural, enquanto a maioria das pessoas ainda é incapaz de realizar psicologicamente a frase bíblica: "A não ser que vos torneis como as criancinhas".
Como portadoras de luz, ou seja, amplificadoras da consciência, a criança vence a escuridão, ou seja, o estado inconsciente anterior. Uma consciência mais elevada, ou um saber que ultrapassa a consciência atual, é equivalente a estar sozinho no mundo, representado pela criança. A solidão expressa à oposição entre o portador ou o símbolo da consciência mais alta e o seu meio ambiente.
Chama a atenção o paradoxo presente em todos os mitos da criança, pelo fato dela estar entregue e indefesa frente a inimigos poderosíssimos e, constantemente ameaçada pelo perigo da extinção, mas possuindo forças que ultrapassam muito a medida humana. Esta afirmação se relaciona intimamente com o fato psicológico da "criança" ser "insignificante" por um lado, isto é, desconhecida, "apenas" uma criança, mas por outro, divina.
O mito enfatiza que a "criança" é dotada de um poder superior e que se impõe inesperadamente, apesar de todos os perigos. A "criança" nasce no útero do inconsciente, gerada no fundamento da natureza humana, ou melhor, da própria natureza viva. É uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades, desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar- se a si mesmo. O impulso e compulsão da auto-realização é uma lei da natureza e, por isso, tem uma força invencível, mesmo que o seu efeito seja no início insignificante e improvável.
 A criança corresponde ao que é "menor do que pequeno e maior do que grande": o si-mesmo, como fenômeno individual, "menor do que pequeno", mas como equivalente do mundo, "maior que o conhecimento do mundo e da consciência. Criança é o sujeito transcendente do conhecer, pólo oposto do universo empírico. A criança é o ovo dourado, que não é filho do homem e nem do mundo. O ovo sai do útero do vasto mundo, sendo por isso um acontecimento cósmico.
A criança é o símbolo que não aponta mais para trás, mas para frente, para uma meta ainda não atingida. Portador de cura e superação dos conflitos.
O ser originário bissexual torna-se símbolo da unidade da personalidade do si-mesmo, em que o conflito entre os opostos se apazigua.
Psicologicamente, esta afirmação significa que a "criança" simboliza a essência humana pré-consciente e pós-consciente. O seu ser pré-consciente é o estado inconsciente da primeiríssima infância; o pós-consciente é uma antecipação da vida além da morte.
Referencia
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.



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